A Nova Lei do Ruído

 

Por JORGE PATRÍCIO*

artigo no Jornal Público de 14.05.2001

 

Entra amanhã em vigor o novo regulamento sobre o ruído, designado por Regime Legal da Poluição Sonora - RLPS. Pelo facto, merece especial importância proceder-se a uma análise crítica de alguns aspectos que se consideram problemáticos, ao nível dos efeitos que se prospectivam.

Esta legislação preconiza que as áreas, existentes ou previstas, definidas em instrumentos de planeamento territorial como vocacionadas para habitação, devam ser enquadradas por zonas definidas acusticamente como sensíveis, as quais são parametrizadas, para os locais mais exigentes do ponto de vista acústico, com uma redução de cerca de 10 dB(A) relativamente ao disposto no anterior regulamento. Ora, para que seja cumprida uma exigência de redução de 10 dB(A), têm as Câmaras Municipais - entidades a quem foi atribuída competência para o efeito à luz do presente decreto -, que reduzir o volume de tráfego motorizado nas vias integrantes dessas urbanizações em cerca de 10 vezes (isto, na hipótese de se manterem todas as outras variáveis influentes como constantes, tanto a curto como a médio prazo).

Se acaso as áreas em causa integrarem zonas de comércio e serviços deixarão então de ser definidas como zonas sensíveis passando a serem designadas como mistas. É óbvio que, na prática e no contexto do planeamento existente em Portugal, só irão existir zonas mistas, dado que é rara a rua, praça ou avenida que não tenha o seu estabelecimento comercial. Ter o café ao pé da porta, a mercearia, o talho, a banca de jornais, etc. é o que a maior parte dos portugueses desejam. Na minha opinião, esta separação tão rígida afigura-se pouco realista. Talvez fosse mais adequado ter-se aproveitado o princípio do zonamento acústico definido pela anterior regulamentação - zonas pouco ruidosas, ruidosas e muito ruidosas - e adaptá-lo à actualidade.

No que respeita à criação de mapas de ruído, esta nova lei vai mais longe do que aquilo que a ainda proposta de Directiva comunitária sobre a gestão do ruído ambiente preconiza, e a qual constituiu a filosofia inspiradora da redacção desta nova regulamentação. A Directiva impõe datas-limite e quantificação de aglomerações populacionais onde deve ser efectuada cartografia de ruído: até ao ano 2005 a aglomerados com mais de 250.000 habitantes, estendendo-se até 2010 aos aglomerados com mais a 100.000 habitantes. No RLPS propõe-se para todos os aglomerados, embora que faseadamente, sem limites temporais nem quantificação populacional. Esta abrangência de aplicação e indefinição de critérios populacionais origina, obviamente, o descrédito do cumprimento do novo normativo. Além do mais, a Directiva comunitária aponta para o desenvolvimento de acções visando atingir valores limite de ruído ambiente que são análogos aos que a regulamentação nacional a revogar preconizava.

Outro aspecto tem a ver com o facto de se ter retirado desta nova legislaçãoo corpo legal respeitante aos edifícios, remetendo as verificações respectivas para o anterior regulamento datado de 1987, que o RLPS pretende revogar. Esta opção tem três aspectos extremamente negativos:

- O primeiro refere-se à enorme ambiguidade na qualificação acústica dos locais de implantação de edifícios, a qual determina, de um ponto de vista de projecto, o isolamento sonoro médio das fachadas - no diploma de 87 utiliza-se o parâmetro L50 e no novo diploma o parâmetro Leq.

- O segundo refere-se ao facto de ter sido revogado um artigo do diploma de 87 que condicionava o isolamento sonoro das fachadas ficando assim a existir um vazio legal para este efeito; e

- O terceiro refere-se à dispersão do corpo legislativo sobre o ruído, com as consequências de ineficácia e incoerência de interfaces que daí resultam. Isto, porque a existência de um único diploma sobre o ruído, coerente e homogéneo, mesmo que algo volumoso, facilitaria muito mais as aplicações e a sua própria interpretação, do que um regulamento disperso por vários textos legislativos e com interelações ambíguas.

Um outro aspecto refere-se ao ruído admissível em determinados locais dos edifícios escolares e de unidades hospitalares, proveniente do funcionamento de equipamentos vários, que, de acordo, com a legislação ainda existente é quantificado por um parâmetro (L50) e neste novo normativo indicia-se que deva ser por outro (Leq). Ora isto origina uma confusão enorme ao nível dos procedimentos a seguir, dado que o novo RLPS obriga a aplicar o regulamento de 87 a estes edifícios e depois no seu próprio corpo legislativo induz a contradição desta disposição (art. 12º).

Outro aspecto interessante relaciona-se com o ruído de vizinhança (art.10º). Não me parece fácil o seu cumprimento dada a inexistência de suporte legal para o seu cumprimento, o qual pode situar-se no livre arbítrio de cada circunstância. Imaginemos que alguém tem um cão que ladra de noite e incomoda os vizinhos. Um deles queixa-se à polícia que vem ver o que se passa. Batem à porta e o dono do cão abre. A polícia ordena que o cão não ladre. O dono diz que o cão nunca ladra e que o vizinho é alucinado. A polícia vai-se embora sem provar a queixa. E assim sucessivamente... E isto porquê? Porque não há imposição para se efectuarem medições nem remissão para artigos específicos. Naturalmente que este tipo de problema é preocupante. No entanto, julgo que, de um ponto de vista de eficácia, seria melhor enquadrá-lo noutro corpo de regras, por exemplo nos estatutos dos condomínios, cujas administrações se encontram logicamente mais habilitadas, com conhecimento de causa, e eventual autoridade para os solucionar.

Não posso deixar de referenciar que este novo regulamento tem naturalmente aspectos positivos que não podemos esquecer. Um deles diz respeito aos alarmes dos veículos automóveis, os quais, se não forem desactivados pelo proprietário num período de 20 minutos, legitima a recolha do veículo em questão pela autoridade policial. Outro aspecto diz respeito à eliminação de ambiguidades evidentes no que relaciona com os critérios de incomodidade para terceiros (criando no entanto mais algumas devido à indefinição do período de avaliação, art. 8º, nº 3), de licenciamento de instalações ruidosas e do ruído devido a estaleiros de obras. Também o carácter preventivo associado à exigência de aprovação de projectos acústicos (ainda que com a possibilidade de deferimentos tácitos) e à emissão de licenças de ruído para a realização de actividades ruidosas como feiras, mercados e festas populares exteriores, é naturalmente um grande passo na promoção de um melhor ambiente sonoro.

No entanto, não se compreende a atitude apressada de produzir uma legislação desta complexidade, sem antes ter sido apoiada com a participação activa de um conjunto alargado de entidades conhecedoras da matéria tais como: unidades de investigação, direcções regionais do ambientes, universidades, autarquias locais, eventualmente empresas e a comissão técnica de acústica CT-28, que acompanha a elaboração das normas que suportam a concretização dos procedimentos regulamentares deste diploma, e, até, a própria Sociedade Portuguesa de Acústica, como entidade congregadora dos que trabalham e se interessam pelo desenvolvimento e promoção da acústica e dos meios de protecção contra a poluição sonora, em Portugal.

Porque, tenha-se consciência disso, quando existe uma Lei que não tem sido suficientemente aplicada no território nacional, apesar dos seus treze anos de existência (antigo regulamento de 87), a sua revogação por uma outra menos objectiva, com propósitos de abrangência irrealista, menos conforme com aspectos normativos, possuidora de interfaces ambíguas, e com muita possibilidade de incumprimento, só contribui para desacreditar a temática e para que, aquilo que dantes se tinha conquistado em matéria de cumprimento legal, o deixe de ser agora.

E agora? Agora, dado que o Governo é avesso a reconhecer que este regulamento tem múltiplas incongruências, derivadas de ter sido elaborado em cima do joelho, e que seria de bom tom providenciar a anulação imediata da sua entrada em vigor, produzindo algo consistente e adequado, perspectiva-se no horizonte próximo o surgimento de várias portarias que irão tentar eliminar os problemas criados, introduzindo-se desnecessariamente entropia adicional nos processos de análise consequentes. Mas enfim.... deste modo pode mostrar mais trabalho feito.

Por último, uma observação: porque é que o governo produziu uma regulamentação sobre o ruído parecida com um grande manual de multas que ninguém vai cumprir (arts. 22º, 23º, 24º, e 25º; ou sejam 14% da totalidade dos artigos do RLPS)?.